quarta-feira, 18 de julho de 2007

Contos astrais: O escorpião

Nivaldo Pereira - nivaldope@uol.com.br

Pouco depois de abrir o velho chalé da família e escancarar as janelas para ventilação, Corina acompanhou da sacada a partida do carro. Paulo ia guiando. Ceres não tinha carteira de habilitação e precisava esperar por Ademar, o namorado, que chegaria em instantes na rodoviária de Canela. Corina estava curiosa em conhecer pessoalmente o rapaz que fisgara o coração da sua melhor amiga. Certamente seria divertido este final de semana serrano, ainda mais com um providencial friozinho em pleno novembro. Se ela gostasse do Ademar, e se ele e o Paulo se dessem bem, quem sabe poderiam ser ele e a Ceres os padrinhos do casamento anunciado para o ano seguinte. Uma rajada de vento frio indicou que a noite chegava. Resolveu pegar lenha no porão, porque lareira acesa seria fundamental nesse astral esperado de amigos em festa.
Abriu a porta do porão e sentiu o bafejo bolorento de lugar fechado sem sol. Quando criança, morria de medo de descer sozinha ali. Mas um dia, já adolescente, discutiu com a mãe e, tomada por uma raiva surda, foi se abrigar exatamente no breu úmido de debaixo da casa. Ficou lá durante horas, inerte, ouvindo o chiar dos camundongos e os passos dos pais lá em cima, preocupados com o amuado desaparecimento da filha. Quanta bobagem! Mas pelo menos enfrentara o medo do porão. Agora o interruptor no topo da escada não obedecia ao seu comando. Lâmpada queimada. Onde haveria outra? Haveria outra? Pensou na lanterna do pai, na cozinha. E foi assim, de lanterna acesa em punho, que Corina avistou a pilha de lenha no meio das tralhas do cubículo. Encheu a cesta de vime com a madeira cortada, cuidando de focar bem a luz da lanterna para não ferir a mão. Foi quando avistou uma sombra se mexer por entre as achas, pequena, mas veloz. Afastou-se a tempo de reconhecer um escorpião avermelhado sumindo para debaixo da pilha de lenha. Ela subiu correndo a escada, fechando a porta com estrondo. No dia seguinte, o Paulo daria um jeito naquele invasor...
Mal chegou na sala e já ouviu a voz do noivo: “Cori, chegamos”. E a Ceres: “Vem conhecer o Adé”. Ainda tremia no peito o susto com o escorpião, e talvez por isso ela jamais esperasse um outro baque em seqüência, quando o coração quis ir à boca. Meu Deus! Era ele! Sim, o mesmo cara! Aqueles olhos pretos, inconfundíveis, mesmo agora, tantos anos depois... Sentiu naquele olhar intenso de outros tempos que ele também a reconhecera. Ela se controlou o mais que pôde e estendeu a mão, dissimulada: muito prazer, a Ceres fala de ti o tempo todo, é Adé pra cá, Adé pra lá, que bom te conhecer, a casa é de vocês. Lá dentro dela, um vulcão de estranheza, uma frieza defensiva. Um segundo, ou nem isso, e já gozando de sua condição de futuro anfitrião, Paulo puxou Ademar pelo braço e o conduziu ao quarto de hóspedes. Toda cúmplice, Ceres se chegou à amiga: “Não te falei que ele é magnético? Notei que ele te deixou sem graça, Cori. Ele adora fazer isso...” E soltou uma risada de menina grande.
Cori farejou que aquela noite seria intensa. Fechou-se no banheiro e a memória refluiu. Ali mesmo, em Canela, casa de uma amiga, festa adolescente, quantos anos tinha?, catorze?, ele tomando Coca sozinho no jardim, do lado do grande balanço. Os olhos. Ele fixa nela, encara, não entrega. Ela gosta. O aceno com o balanço. Original. Ela vai. Eu te balanço. Devagar. Pouquinho mais forte, pra ver de cima? Assim tá bom, tá bom. Mais devagar, por favor. Assim não, vou descer. Chega, por favor. Pare, pare. Chega, a corda vai partir, posso quebrar o pescoço. Vou gritar por socorro. Mas e se os pais vierem correndo, como explicar?, por que aceitara ser empurrada por um desconhecido? Impulso louco de soltar as cordas e cair. Queda fatal. Morrer de vergonha e de raiva e ainda matar de remorso esse infame. De repente, ele a ampara, cessando o balanço com um abraço. O olhar. Calor. Ela o empurra, furiosa. Corre para casa. Dias de terror. Ou seriam dias de fascínio pelo menino louco, sem nome? Entocada em casa. Sai desse quarto, guria. Briga séria com a mãe. O refúgio no porão, apesar do medo. Horas de frio, horas infernais. Sim, onze anos se passaram. Agora ele é o Adé, o tão falado cirurgião namorado da amiga Ceres e que viera de ônibus de Porto Alegre.
Logo mais, fogo aceso, o vinho bateu forte para ela já na segunda taça. Ceres e Adé se beijavam na sacada. Paulo cozinhava. Ela arrumava a mesa. Algazarra no jantar. Tudo muito rápido. Ou seria a embriaguez? Olhares furtivos. Olhos negros que ainda gostam de encarar. Amiga de pileque, palhaçando a mesa com piadas. Noivo de platéia. Ela enlouquecendo: a antiga ferida, restos de pânico, um ódio guardado, e uma fissura descabida por aqueles olhos de comprovada crueldade. O fogo baixou na lareira. Paulo foi buscar mais lenha no porão. Ceres servia vinho. Ademar acariciava o cabelo da namorada, mas num canto de olho... Desgraçado! Como pode fazer isso? Paulo falou algo lá de baixo, mas ela não escutou, de tão tomada pelo clima algo sórdido da mesa de jantar. O noivo voltou com um feixe de lenha nos braços, comentando a luz queimada. Só aí ela lembrou do escorpião. E se o bicho tivesse atacado o Paulo?
O sangue em suas veias alternava correntes quentes e geladas. Nunca sentira algo assim? Ou já sentira? Alegou sono, vinho forte, cabeça rodando, e foi deitar. E ficou no escuro do quarto, olhos arregalados, ouvindo as risadas da Ceres e um ou outro timbre do Paulo. Nem sinal da voz do caladão Ademar... Uma hora depois, quando Paulo veio deitar ao seu lado, ela o agarrou de súbito com um misto de desejo e grosseria, unhas e dentes, feito pantera no cio. Agiu com uma intensidade e uma desenvoltura nunca demonstradas em anos de relacionamento. Ele brincou: “Vou comprar mais desse vinho...” Ela ficou quieta, preocupada. Ainda haveria o sábado e o domingo na mesma casa que o Adé... E havia um escorpião no porão...