quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Tábua na dispersão (ou Netuno sobre Saturno)

Nivaldo Pereira - nivaldope@uol.com.br

Hoje acordei arrebatado pela dispersão. As tentativas anteriores de escrever esse texto (várias) resultaram em sucessivos retornos à tela vazia: estaca zero, limbo primordial, o nada que insiste em querer dizer tudo. Já me conheço o suficiente para saber que não adianta duelar contra esse impulso nevoento, tentando forjar do caos de infindas possibilidades a costumeira narrativa linear. O jeito é me entregar. É o preço de quem se acostumou a ser franco no que cria. Então, sorry, baby, mas hoje a crônica sai sem pé nem cabeça, pois a alma – base de tudo – quer divagar. Que assim seja, quem sou eu para querer mandar numa alma elástica.
Mas insisto em vagas conexões de lógica, ainda que do passado. A palavra elástica, por exemplo, me remete logo a uma antiga mesa da família que aumentava de tamanho com a inclusão de uma tábua no meio. Criança, eu achava graça de chamarem mesa elástica a uma mesa tão dura quanto as outras. Elástico, para mim, era o cordão flexível que ajustava ao corpo o calção de moleque que eu usava. Mas uma mesa? Até entendia que a tal elasticidade era por causa da possibilidade de a mesa crescer e voltar ao tamanho original. Mas achava o termo impróprio. Ainda acho. Não espero de uma mesa que seja elástica. De mesa, espero firmeza – e não peço perdão por trocadilhos.
E volta o mar de neblina da dispersão, e agarro-me ao que parece sólido, como tábua de salvação. De novo, a tábua. Como a porta da rua. Todo ano é igual: o sol do começo de janeiro, nascendo mais ao norte do horizonte, no meio da manhã incide certeiro na entrada do meu apartamento. Parece querer invadir os espaços da sala, a ponto de uma nesga luminosa se insinuar por debaixo da porta. Sol de verão é assim mesmo, não se contenta em ficar lá fora. E me traz em casa a sensação praieira de contemplar as ondas, em total devaneio, escorregadio de lógicas, ao modo dos peixes. Onda vai, onda vem, eu indo com elas, longe daqui, mas bem aqui: elástico, virando a mesa do real. No fim, esse texto virou uma quase tábua, bóia no mar disperso. Mas tudo agora se dissolve. Diz. Sol. Vê?