quarta-feira, 28 de novembro de 2007

ONDE VOCE ESTÁ AGORA?



Por onde tem andado? Tem se escondido muito....ou pouco, mas tem se escondido?
Quando a Morte bate à porta , qual é o som da sua batida?
Plutão entrou sem bater e trouxe consigo uma noção de estado, como estamos, em que estado?
Às vezes para sair de um estado latente é preciso uma conexão própria e intensa. Própria no sentido de apropriação, propriedade de si mesmo, posse daquilo que se tem, posse do que é seu. Sair da impressão que vem de fora, sair de fora e ir para dentro. Percorrer um caminho , discordar , acordar, desenrolar-se por completo, mostrar o que é seu.
O tempo vai passando, Saturno caminha, ouve-se o som de sua pegada firme e constante, não há engano, não há tempo perdido, há o caminho do caminhante, o passo.
Agora no tempo de Plutão pode-se perceber o som interno, o silêncio do tempo no espaço que nos compete!
Respirar o que estamos fazendo nesse exato instante, respirar nosso estado de agora!
Acolher, acolher, acolher aquilo que se está sentindo.....tudo passa.

Desafiar é uma palavra bonita e necessária, saber desafiar, mandar vir, que venha ....sem exclamações....
reticências
O que se pode perder? Afinal de contas quem é esse outro na sua frente, o que (quem)ele desperta?
De quem nos defendemos? É preferível enfrentar os bichos do que ficar acorrentado numa redoma de si mesmo,
ruminando idéias e imagens com as quais nos identificamos por muito tempo. A morte não mata nada, apenas ajuda a Vida a ser Viva!
Pra se desamarrar é bom iniciar pela respiração e continuar .....

O tempo
Em tempo
A tempo
Eduardo Krug

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Contos astrais: Capricórnio

Nivaldo Pereira – nivaldope@uol.com.br
Ele já sabia que do alto do pico dava para ver, ao longe, toda a Baía da Guanabara, com seus recortes naturais a irradiar calores praianos. Respirou fundo e preparou-se para a grande escalada: quase mil e setecentos metros, até o cume do imponente Dedo de Deus. Uma ligeira névoa ainda encobria a paisagem do Parque Nacional da Serra dos Órgãos. Os dois guias iam à frente, parecendo alheios ao poder da grande rocha e à grandeza da empreitada que se iniciava. O mais velho devia ter uns 40 anos. O outro, um rapagão de não mais que 25. Na véspera, quando do acerto da aventura, o mais velho foi curto e seco: “Você está pagando para obedecer ao que eu mandar.” O ríspido tom de autoridade da sentença do outro despertou-lhe uma ponta de raiva: afinal, ele tinha experiência em escaladas, não era nenhum irresponsável. Como sempre, a razão se impôs: fosse ele o guia, agiria da mesma forma. Numa jornada de alto risco como aquela, não se pode dar ao guiado o direito a improvisos. É obedecer, e pronto.
Duas horas mais tarde, cumpridas as etapas iniciais, ele já se encontrava dependurado na corda de náilon, sentindo o frio do vento abismal. As mãos untadas de carbonato de magnésio, para melhor segurar, buscou o telefone celular no bolso do colete. Devia ligar para ela, avisar que tudo corria bem, saber como andavam suas dores. Mas o aparelho estava sem operação, talvez por causa da altitude. Pensou em perguntar ao guia e ao assistente se os celulares deles funcionavam. Não quis incomodar. Haveria no caminho algum degrau mais saliente, onde pudesse descansar, e ali, quem sabe, telefonaria para a mulher. Mais ansioso estava com a chegada do trecho conhecido como chaminé, uma fenda que exigiria artifícios de aranha na escalada, com pés e mãos dispostos na geometria que o guia explicara lá embaixo. Até a noitinha já deviam estar de volta ao sopé da montanha, tendo ele deixado seu registro de conquista no topo do majestoso Dedo de Deus.
A vista dali era espetacular, com Teresópolis parecendo uma cidadezinha de brinquedo. Localizou a área onde ficava a pousada e onde a mulher o aguardava, possivelmente vendo tediosos programas matinais na televisão. Nisso um deslizar de asas chamou sua atenção, entre os estampidos secos de um ou outro pino cravado na rocha. Era o planar de um urubu. Num segundo a memória o conduziu a um tempo remoto da infância, quando morrera a velha cabra leiteira do avô. O cadáver tinha sido jogado num matagal e ele ia todo dia espiar o trabalho dos urubus, indiferente ao mau cheiro e ao enxame de moscas. Menino calado, criado pelos avós. Sem emoção, olhava os restos da cabra e pensava no que seria de si quando os avós morressem também. Menino estranho, que aprendeu cedo a não contar com ninguém para viver.
Achou graça de como um urubu o tinha remetido a lembranças tão antigas. A mulher achava esquisito ele nunca falar da infância e nem dos pais. É que a vida para ele tinha realmente começado quando acabou o serviço militar e, com a pequena herança deixada pelo avô, abriu a seguradora patrimonial que até hoje lhe toma todo o tempo. Achava nobre garantir a posse do que se conquistou com muito suor. Era boa a sensação de ser importante para a sociedade E era muito bom perceber esse valor ali, acima de tudo, nas alturas de uma rocha que queria tocar o céu. Súbito, sentiu uma leve tontura. Devia ser a pressão, coisa normal em escaladas. Respirou mais fundo. Talvez fosse mesmo hora de dar uma parada, e de ligar para a mulher.
O urubu insistia numa estranha amizade com ele, rondando por ali. Ou não seria amizade, e sim um mau agouro, um instinto de ave carniceira de tê-lo morto como comida? Sacudiu a cabeça para afastar esse pensamento e trazer à baila a sempre lúcida razão. Nenhuma vertigem deveria lhe tirar o controle lógico das circunstâncias. E nada de preocupações! A mulher passava bem, com certeza. Dois dias antes, ela tinha escorregado na laje de pedra sob uma cachoeira e quase fraturou o joelho. O médico tirou radiografias, enfaixou o local contundido, pediu repouso absoluto, receitou a medicação analgésica. Ele não tinha culpa de as férias dela terem terminado ali. E nem ela. Foi obra do acaso, do destino, do dedo de Deus, sabe-se lá. E se ninguém tinha culpa, ele não podia desperdiçar a oportunidade de escalar o pico de suas ambições...
Um grito do guia avisou: a fenda da chaminé se aproximava. Então, nada de descanso agora. Toda concentração seria pouca. Olhou os telhados de Teresópolis bem lá embaixo. A senhora dona da pousada devia estar obedecendo ao seu pedido de a cada hora ir ao quarto deles ver se a mulher precisava de algo, se sentia dores. E o bebê dentro dela? Gravidez de dois meses podia ser arriscada em sustos, quedas... Ora, ninguém tinha culpa da queda! Ou tinha? Na verdade, a mulher queria passar o Réveillon, dali a três dias, em Copacabana. Era seu desejo antes de ser mãe pela primeira vez. Ele a dissuadiu da idéia, falando das maravilhas da Serra dos Órgãos, do Dedo de Deus, seu desejo de alpinista. Sim: ele tinha manipulado a vontade dela em proveito próprio. E ela devia estar aflita, porque ele ainda não telefonara. Devia desistir? Voltar para ficar com ela? Ceder a emoções de medo e culpa? Não! Nem era hora de pensar nisso. Tomou fôlego e, absolutamente determinado, seguiu os guias para dentro da fenda na rocha, rumo ao topo.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Contos astrais: Virgem

Nivaldo Pereira – nivaldope@uol.com.br
Ninguém merece isso! Uma hora e meia de espera! É muita falta de respeito! Por que diabos marcam hora de consulta? Se fosse ele o atrasado, no mínimo nem seria atendido. Olhou de novo o relógio. Quis pegar outra revista de futilidades, mas já tinha folheado todas. Será que revista de consultório médico não pode ter conteúdo? A irritação reavivou o incômodo nas entranhas. Não uma dor aguda, mas uma sensação esquisita, como se um bicho estivesse caminhando pelas volutas de seu intestino. Deve ser um alien, pensou, imaginando-se explodindo para libertar um pequeno monstro intergaláctico que devia ter se alojado em seu interior. No dia da primeira consulta, o médico perguntara se ele era calmo ou controlado. Teve que rir quando admitiu um auto-controle absoluto. Como ser diferente? Como não se importar com tanta imbecilidade, tanto desrespeito?
A mão suava, segurando a coleção de radiografias dos exames feitos. Em casa ele tinha olhado o laudo dos resultados: termos médicos, de difícil compreensão. Foi pesquisar cada um na internet. Ficou assustado com umas tais diverticuloses. Não foi disso que morreu o Tancredo Neves? No resto, a certeza de uma úlcera em formação. Já sabia de tudo: o médico iria prescrever uma dieta rigorosa, remédios mais fortes que os da gastrite e calma, muita calma. Baita ironia recomendar calma ao paciente quando o próprio doutor não o respeita, deixando-o nessa sala horrenda de tons pastéis e quadros de uma paz falsa, no meio de uma gente vítima de problemas gástricos e intestinais. A secretária ainda teve o desplante de vir pedir a ele que desse a vez a uma senhora de idade. Disse sim, sempre dizia sim, sempre fazia favores. Chega! Iria embora dali já! Imaginou-se batendo a porta e soltando um palavrão cabeludo, mas apenas disse à atendente que precisava sair e que marcaria outra hora. Tudo muito educado. Sempre muito educado...
Voltou a enrolar as radiografias em canudo e as guardou na mochila, agora sem preocupação de que amassassem. Definitivamente não queria mais pisar os pés naquele consultório nem ver a cara daquele médico. Saiu caminhando pelas ruas do centro da cidade. A mãe iria questionar seu gesto desarvorado de sair sem ter sido atendido. Pensou numa desculpa. Muita gente, urgências chegando, teve que dar a vez a uma senhora – e isso nem era mentira. A mãe. Limpe os pés, lave as mãos, estique o lençol, tire os cotovelos da mesa, não mastigue de boca aberta, não molhe a borracha de saliva, não risque o livro de caneta. A mãe. É para o seu bem, não reclame, coma tudo, engula o choro, não deixe o gato subir na cama. Nessa tarde ele não voltaria ao trabalho. O pai sabia dos exames. Entenderia a demora. O pai. Outra casa, outra mulher, outros filhos, irmãos pela metade, sem nenhum afeto. O pai. Um homem trabalhador, a quem obedecia, mas não amava. Seu pai, seu patrão, carreira promissora como gerente exemplar na rica empresa de limpeza industrial.
Andando a esmo, sentiu-se confuso, talvez percebendo a proximidade da culpa pelo que fizera. Detestava a sensação de culpa, mas vivia dentro dela. Culpa de ter cursado administração de empresas e não veterinária; de ter silenciado, por medo de um não, ao amor que sentira na adolescência; de ser como era, de ser quem era, com esse nome estranho: Astreu. Alvo de gozações desde criança. Astreu, tua língua o gato comeu. Astreu, pega no meu. Mas era o mesmo nome do avô, a quem ele adorava. Por isso nunca reclamara. O avô. Vivia sozinho num sítio, de onde nunca quisera sair. Vô Astreu. Esse sim, era feliz, longe dessa imundície de cidade corrupta. Um ganido lancinante o tirou das lembranças do avô e ele viu o cão de rua sair se arrastando, curvado ao meio, uivando de dor depois do brutal chute nas costelas dado pelo homem da fruteira. Nunca tinha reagido assim, mas num impulso gritou ao outro que fosse chutar a própria mãe. Babaca! Covarde! Monstro! Covarde!
O homem da fruteira pegou um porrete e veio em sua direção. Era imenso. Vermelho e imenso. E o porrete na mão, olhos injetados de ódio, praguejando de volta sua fúria contra o rapaz franzino que ousara desafiá-lo. Um rapaz que não arredara pé do lugar, ali, do outro lado da rua, sustentando na boca raivosa o vil xingamento de covarde, covarde, e a mãe no meio. Ah, esse moleque besta vai receber sua lição, vai sim. Vai saber quem é babaca, quem é covarde. Vai latir mais do que o cachorro sarnento que ele quis defender. É melhor correr, desgraçado! Vamos, corre. Corre, senão vou ter que te arrebentar. Vou te cobrir de pau, sacana. Não vai correr? Quer me diminuir? Então quer me encarar? Toma, toma, toma, toma, seu cachorro. Não vai gritar? Toma outra, toma mais...
Tudo muito rápido. Um zunido na cabeça, se afinando, afinando, até sumir. O silêncio e o branco. Depois o verde. Mato? Água? Vô Astreu o ensinando a nadar. O riacho morno correndo, passando através de si. Ele mesmo uma fonte quente. Tudo ficando mais longe. Tudo indo e vindo. Noite e dia, de repente. Fiapos de vozes. No meio do branco, o avô sentado na porta da casa de madeira. Ele no colo do avô. Ecos da passarada ao anoitecer. Ninhos nas árvores, bichos andando soltos, felizes, entre arbustos e flores. A vida inteira feliz. Ele voando. Um mundo perfeito.